D. Joana: a nossa rainha Njinga
A tradição oral angolana, as crônicas da colonização portuguesa na África e os registros da Companhia das Índias Ocidentais do século XVII relatam a existência de uma mulher extraordinária, de nome Ngola-Njinga, filha de Nzinga-a-Mbande-Ngola-Kiluaje, rei de Matamba. Venerada por seu povo, foi reconhecida também pelos colonizadores europeus como uma mulher inteligente, hábil, majestosa, guerreira de coragem inigualável e sabedora dos segredos da luta e da festa. Sobre aquela rainha Njinga africana escreveu Câmara Cascudo:
“Morreu (...) anciã venerada, andando vagarosa, cabeça firme, olhos (...) inquietos. Tinha 82 anos. Ninguém conseguiu esquecê-la.”[1]
Pelos pilotis da PUC-Rio circulou, por muitos anos, uma mulher que bem poderia ser da linhagem daquela rainha africana, e, como à Njinga angolana, ninguém que a conheceu poderia esquecê-la. Era Joana Brandão de Aguiar, a quem, em sinal de respeito, todos, do reitor ao mais jovem dos estudantes, chamavam de D. Joana.
D. Joana era maranhense, filha de Firmino Brandão e Vitória Maria Brandão, nascida no dia 24 de junho de 1922. Quando Joana nasceu, portanto, as fogueiras de São João iluminavam a noite pelo Brasil afora, sem saber que festejavam, também, aquela vida nova, discretamente nascida em São Luís do Maranhão. Muito provavelmente, por ter nascido nesse dia, Firmino e Vitória batizaram a menina com o nome de Joana. Com 36 anos foi contratada pela PUC por 90 dias. Seu primeiro Registro de empregado das Faculdades Católicas, hoje conservado nos arquivos do Departamento de Recursos Humanos, informa que desempenhava a função de servente, contratada para trabalhar de 7 às 16 horas, com direito a “uma hora de intervalo para refeição e descanso”.
Aqueles primeiros 90 dias de seu contrato de 1958 multiplicaram-se até o dia em que D. Joana foi conviver mais de perto com o santo padroeiro da festa do dia de seu nascimento. Aos 81 anos, D. Joana morreu no dia 16 de novembro de 2003, e era, na ocasião, funcionária do Departamento de Engenharia Civil, lotada no Laboratório de Estruturas, ainda que já não trabalhasse em razão de sua saúde precária. Mas nunca passou pela cabeça de ninguém demitir ou aposentar a D. Joana.
Quem se lembra da figura ao mesmo tempo gigante e pequenina de D. Joaninha já idosa, os cabelos brancos sempre impecavelmente penteados, queridíssima por Deus e o mundo, o andar já lento pelo peso dos anos, a conversa gostosa, o olhar muito vivo e uma inesgotável disponibilidade para a vida sabe que a semelhança entre ela e a Njinga mítica não se esgota no retrato de ambas ao final da vida.
D. Joana gostava da vida e sabia viver. A seu modo, foi uma guerreira admirável e não foram poucas as batalhas que soube vencer pela vida afora. De vez em quando sua faceta de guerreira se revelava com mais intensidade, e ficava brava de verdade, sobretudo quando tinha que assinar o que quer que fosse, inclusive suas férias...
Inteligente, nos tempos da ditadura soube reconhecer na multidão de garis que, um dia, apareceu para varrer a PUC-Rio, agentes da repressão disfarçados. D. Joana comandou uma tropa de funcionários, entre os quais o Sr. Moisés – um ascensorista igualmente inesquecível -, insuspeitos aos olhos dos garis do DOPS, na busca dos que chamava de “os meus meninos”, as lideranças do movimento estudantil. Hábil, soube conduzir, por caminhos que só os funcionários antigos conheciam, aquele bando de jovens assustados, pelo meio da mata que existia onde hoje é um trecho da auto-estrada Lagoa-Barra, até a rua Visconde de Pirajá, de onde se escafederam no primeiro lotação Gávea-Leme que passou. Da calçada do ponto de ônibus, uma D. Joana sorridente e majestosa acenava para os estudantes que ajudara a escapar.
Generosa, acolhia e criava qualquer criança de rua que encontrasse e soubesse não ter família. Milagrosamente, fazia caber aquela família ampliada, cujos laços de parentesco ninguém jamais foi capaz de decodificar, em seu apartamento no prédio vizinho à PUC-Rio, construído conforme o projeto inovador do arquiteto Afonso Eduardo Reidy, e que a irreverência dos cariocas batizou de O Minhocão. No final da vida, se alguém perguntasse quantos filhos adotara – todos sem papel passado – D. Joana dava uma risada gostosa e dizia: “Contei até vinte, minha filha. Depois perdi a conta!” E qualquer estudante ou professor da PUC-Rio que por motivos políticos ou pessoais precisasse de um refúgio, sabia que a casa da D. Joaninha era porto seguro e fortaleza inexpugnável. Reza a lenda que um ex-aluno da PUC-Rio, de notório protagonismo no cenário político do estado e do país, foi um dos que estiveram exilados nos territórios de D. Joana.
D. Joana tinha suas preferências: adorava beber uma cachacinha de boa qualidade, prova de que sabia apreciar as boas coisas da vida. Quando a aposentadoria ficou curta para cobrir os gastos cotidianos e suas preferências etílicas, alguns dos “seus meninos” dos tempos da ditadura, já então transformados em ilustres doutores, pesquisadores respeitados e professores de programas de pós-graduação da PUC-Rio fizeram uma espécie de assembléia para instituir a chamada lista da D. Joana, a cuja titular era entregue, mensalmente, com grande reverência e discrição, uma quantidade razoável de garrafas de cachaça da melhor procedência. Ela aceitava o presente com o sorriso de sempre e convidava, altaneira: “Apareça lá em casa com os outros meninos para tomar um trago.”
Sobre a memória viva da rainha Njinga ancestral nas tradições afro-brasileiras, em especial nos cantos e rituais do congado, observa Câmara Cascudo:
“Em cada navio [negreiro], invisível e lógica, embarcava a Rainha Jinga...”[2]
Que não nos esqueçamos de guardar um lugar de honra para D. Joana, a nossa Rainha Njinga, nos navios de liberdade em que os sonhos de futuro desta universidade cruzam os mares do tempo.
Margarida de Souza Neves
Departamento de História
Agosto de 2007
[1] Luis da Câmara CASCUDO. Made in África. (5ª ed.). São Paulo: Global, 2001. p. 33.
[2] Idem. Ibidem. p. 40.