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Lugares de Memória na PUC-Rio

A expressão lugares de memória foi criada pelo historiador francês Pierre Nora.  Convencido de que no tempo em que vivemos os países e os grupos sociais sofreram uma profunda mudança na relação que mantinham tradicionalmente com o passado, Pierre Nora acredita que uma das questões significativas da cultura contemporânea situa-se no entrecruzamento entre o respeito ao passado – seja ele real ou imaginário – e o sentimento de pertencimento a um dado grupo; entre a consciência coletiva e a preocupação com a individualidade; entre a memória e a identidade[1].

De 1978 a 1981 Nora promoveu um seminário na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) que reuniu nomes expressivos do cenário intelectual francês para refletir sobre essas questões, tendo como referência a memória e a identidade da França.  A reflexão era oportuna, uma vez que os intelectuais franceses experimentavam a urgência de repensar o processo secular de construção da identidade nacional francesa e de sua contra-face, a memória da França como nação, diante das novas realidades políticas e culturais trazidas pela proposta da União Européia e dos novos desafios da globalização e do multi-culturalismo.  

A proposta do Seminário era tomar como tema de estudo o sentimento nacional francês, e fazê-lo através de alguns objetos – materiais ou imateriais – nos quais se houvesse cristalizado algo da memória nacional francesa.  Das discussões originaram-se sete alentados volumes, publicados entre 1984 e 1986 pela Editora Gallimard, que reúnem estudos sobre temas que vão da gastronomia francesa às festas comemorativas do 14 de Julho;  do Dicionário Larousse às catedrais e campanários espalhados pelo país; da Torre Eiffel às grutas pré-históricas de Lascaux; de Joana D’Arc à Marseillaise.

Para surpresa de Nora, o sucesso editorial da iniciativa não se limitou aos leitores franceses.  A questão mais geral da relação entre memória, identidade e projeto de futuro[2],  que a coleção abordou  ao por em evidência práticas culturais, representações coletivas,  e heróis franceses era, de fato, crucial no cenário cultural contemporâneo e a noção de lugares de memória forjada por Pierre Nora  foi imediatamente apropriada por historiadores e cientistas sociais das mais variadas latitudes geográficas e ideológicas.

Mas o que são lugares de memória na perspectiva daquele que formulou e divulgou esta expressão?

Para Pierre Nora, os lugares de memória são, primeiramente, lugares em uma tríplice acepção:  são lugares materiais onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos; são lugares funcionais porque têm ou adquiriram a função de alicerçar memórias coletivas e são lugares simbólicos  onde essa memória coletiva – vale dizer, essa identidade - se expressa e se revela.  São, portanto, lugares carregados de uma vontade de memória.

Longe de ser um produto espontâneo e natural, os lugares de memória são uma construção histórica e o interesse que despertam vem, exatamente, de seu valor como documentos e monumentos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente ou não,  os revestem de uma função icônica.

Na introdução aos sete volumes da coleção Les Lieux de Mémoire, intitulada Entre Mémoire et Histoire:  la problématique des lieux, Nora nos fornece algumas pistas indicativas do que são, na perspectiva da coleção, os lugares de memória.  Para ele,

“Os lugares de memória são, antes de mais nada, restos. [...] São rituais de uma sociedade sem ritual, sacralidades passageiras em uma sociedade que dessacraliza,  ilusões de eternidade.”[3]

Páginas antes, Nora advertira seus leitores que “a história desaloja o sagrado, e torna tudo prosaico”[4].  A aproximação dos historiadores da cultura aos lugares de memória que pretendem estudar postula, portanto, uma operação crítica meticulosa que permita construir, com os fragmentos que esses  lugares de memória  representam, uma das leituras possíveis da totalidade do processo histórico que os selecionou e revestiu de um particular significado, para desvendar assim os códigos dos rituais que os monumentalizam e, por fim, historicizá-los, ou seja, perceber, como num palimpsesto, as marcas do tempo vivido que, por vezes de forma muito tênue, transparecem sob a ilusão de eternidade que é uma de suas características.

Sem que tenha o valor heurístico de um conceito, necessariamente operativo e referido a um campo teórico determinado, a noção de lugares de memória é sem dúvida sugestiva, e permite uma aproximação interessante àquilo que Abraham Lincoln denominou de laços místicos da memória[5] que identificam, unem e conferem sentido a uma dada coletividade.

Talvez demasiado complacente no plano mais geral, uma vez que seria difícil encontrar algo que não pudesse ser considerado sob essa rubrica, a noção de lugares de memória pode interessar sempre e quando tivermos o cuidado de observar a que coletividade se referem e de responder a algumas perguntas básicas:  são lugares de que memória ou de que memórias?  São lugares de memória de quem e para a construção de que identidades e de que projetos? 

Ao propor a possibilidade de identificação de alguns dos lugares de memória na PUC-Rio, o objetivo do Núcleo de Memória é possibilitar o levantamento de espaços físicos ou simbólicos da universidade especialmente significativos por, de alguma maneira, religarem experiências comuns de toda a PUC-Rio ou de algum de seus setores, ou seja, empreender uma cartografia simbólica do campus. 

Não é difícil pensar, de imediato, em alguns desses lugares especialmente significativos.  Alguns deles atravessaram os tempos, ainda que, certamente, revestidos de sentidos diversos, tais como Os Pilotis, o Solar Grand Jean de Montigny, a Vila dos Diretórios ou As Araras (mesmo sem as próprias).  Outros vivem, hoje, apenas no território das lembranças, como o lendário Bar do Seu Zé, o antigo Ginásio ou a festa do PH.  Muitos dizem respeito a toda a comunidade universitária, como o brasão da PUC-Rio, ou o Edifício Cardeal Leme.  Outros estão referidos, mais diretamente, a um grupo determinado, como o Van de Graaff, ou a Tenda de Artes.  Todos eles contam muitas histórias, soldam experiências, e permitem esboçar, com traços de muitas cores, nossa identidade comum.

Como todos os lugares de memória, na perspectiva da história, por mais que sejam monumentos, são também documentos e, como tal, desafiam leituras e interpretações.  Este espaço do site está aberto aos que quiserem escrever sobre algum desses lugares de nossa memória comum.

Margarida de Souza Neves
Departamento de História
Setembro de 2007.

(adaptado a partir do texto “Lugares de Memória da Medicina no Brasil”  IN www.historiaecultura.pro.br/cienciaepreconceito - acesso em 19 set 2007)

[1] -  Cf. Entrevistas com Pierre NORA em www.eurozine.com e em www.gallimard.fr - consultadas em 28 de dezembro de 2005. 

[2] -  Para aprofundar a relação orgânica e necessária entre memória, identidade e projeto, cfr. Gilberto VELHO. Memória, Identidade e Projeto.  IN  IDEM. Projeto e Metamorfose.Antropologia das sociedades compelxas.  Rio de Janeiro:  Zahar Editores, 1994.

[3] - Pierre NORA.  Entre mémoire et histoire:  la problématique des lieux.  IN  Pierre Nora (org). Les lieux de mémoire.  Paris: Gallimard, [1984]. Vol 1 La République.  p. XXIV.

[4] - IDEM. Ibidem. p. XIX.

[5] - APUD Michael KAMMEN. Mystic chords of memory. The transformation of tradition in american culture.  New York:  Vintage Books, 1993.

Primeiro prédio no campus Gávea, inaugurado em 1955. Hoje chamado Ed. Cardeal Leme, tinha então apenas os blocos A, B e C e era chamado Edifício Central. Na foto já aparece o bloco D, à esquerda, do Instituto de Física, que depois recebeu mais 6 andares.
Primeiro prédio no campus Gávea, inaugurado em 1955. Hoje chamado Ed. Cardeal Leme, tinha então apenas os blocos A, B e C e era chamado Edifício Central. Na foto já aparece o bloco D, à esquerda, do Instituto de Física, que depois recebeu mais 6 andares.