Publicações do Núcleo de Memória da PUC-Rio - Jornal da PUC - 2011

:: Levantado do Chão - artigo publicado em 21/12/2011 no Jornal da PUC, Edição 251


O Conjunto Habitacional projetado por Affonso Eduardo Reidy em foto feita durante a construção da Auto-Estrada Lagoa Barra. c. 1981. Fotógrafo Antônio Albuquerque.
Acervo do Núcleo de Memória da PUC-Rio.

Ninguém poderia prever que o Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente estivesse fadado a perder seu nome, antes mesmo do batismo, para a silhueta sinuosa do desenho do arquiteto Reidy, e que esse “Minhocão”, condenado desde a pia a viver nos subterrâneos da cidade, pudesse ser arrancado da terra e levantado do chão.

De fato, a história do lugar é a de sua levitação. Ela começou quando o interventor federal Henrique Dodsworth deu início a um plano de remoção de favelas do centro do Rio de Janeiro em 1942. Os cinco mil moradores envolvidos foram deslocados para o Parque Proletário da Gávea, em função da tradição operária do bairro. Mas o novo endereço deveria ser provisório. O compromisso da administração pública era fixá-los num conjunto residencial a ser erguido ali mesmo, aos pés do Morro Dois Irmãos, no prazo máximo de seis anos. As pendengas políticas, porém, interromperam a execução do projeto que Affonso Eduardo Reidy, um dos mais célebres arquitetos do modernismo brasileiro, havia concebido.

O Conjunto finalmente ficou pronto em meados da década de 1950, mas pouco tinha que ver com o complexo residencial que fora projetado. Dos mais de setecentos apartamentos e dos muitos equipamentos de lazer, de saúde, de educação e de outros serviços que apareciam nos desenhos originais, somente o prédio principal virou concreto. E esse não foi o único problema das obras.

A auto-estrada Lagoa-Barra, inaugurada em 1982, não atravessou apenas o bairro, mas também o próprio Minhocão, ignorando novamente o projeto de Reidy. Os atropelos, no entanto, não foram apenas na engenharia. Os velhos vícios da política brasileira acabaram por transferir a maioria das unidades habitacionais para funcionários da máquina pública do estado da Guanabara, enquanto as famílias do Parque Proletário que não foram contempladas, uma vez desalojadas e sem destino seguro, ficaram suspensas no ar. Infeliz ironia a de que muitas delas tiveram de procurar abrigo na Cidade de Deus!

Mesmo o Minhocão parecia flutuar na Gávea. Vizinho do suntuoso Jardim Pernambuco, no Alto Leblon, e tão próximo de algumas das mais importantes referências culturais e sociais da elite do Rio de Janeiro, como o Jóquei Clube e a PUC-Rio, ele desafiava o seu entorno. Tanto teve de lutar contra estereótipos que dominou a arte da esquiva, e ainda que estivesse ali, cimentado no chão da Zona Sul, encrustado na pedra e na paisagem, não estava mais em lugar algum. Não demorou para que fosse um forasteiro em seu próprio território. Associado à violência, à desordem, ao barulho e à sujeira, o Minhocão foi apropriado de maneira preconceituosa pelo imaginário de muitas pessoas. Nos últimos anos, ainda que muito lentamente, os cariocas começam a conhecê-lo melhor. Cada vez mais pessoas o procuram para morar, suas repúblicas estudantis o ajudam a rejuvenescer e sua arquitetura já ganhou até o cinema. Mas o Rio de Janeiro ainda está tão longe!

“Levantado do chão”, como o romance de José Saramago, o Minhocão ainda se ergue sobre a cidade que o levantou.
 

Pedro Fraga Vianna
Aluno de graduação do Departamento de História
Bolsista de IC/VRAC do Núcleo de Memória da PUC-Rio

 

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Núcleo de Memória da PUC-Rio