Agenda PUC-Rio 2009

:: Agosto - De Portas Abertas

As imagens que ilustram esse mês contam muitas histórias.  As curvas de nível do mapa topográfico e a planta que indica a vizinhança da capela com a macumba de D. Maria Portuguesa e o lugar de moradia do Tio Binha, da Maria Batuca e das Irmãs Bambú ajudam a contar uma delas.

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Corriam os anos 80, anos de muitos desafios e de alguns sobressaltos mas, sobretudo, anos de esperanças com a redemocratização do país.  Vivíamos todos a saborosa sensação de retomarmos o que era nosso, de afirmar em praça pública a cidadania, de experimentar o gosto da liberdade, de pensar, dizer, e escrever com ela.

A PUC-Rio viveu, em sintonia com aqueles tempos, uma experiência peculiar que se traduziu no MUSP, sigla não muito feliz do Movimento Universidade a Serviço do Povo, que pretendeu estreitar os laços entre as competências específicas da universidade e as demandas das organizações populares, aglutinou estudantes e professores e atuou em mais de 30 favelas do Rio de Janeiro, entre elas, o Morro de Santa Marta, em Botafogo, onde morava, para surpresa de muitos, o vice-reitor acadêmico, Pe. Agostinho Castejón S.J., e onde atuava um grupo não muito numeroso de estudantes e professores.

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Reunidos em assembléia, os moradores do Santa Marta decidiram reivindicar da Light a instalação de uma rede elétrica que permitisse o fornecimento de luz a cada barraco, de forma a terminar de vez com os perigosos gatos da fiação elétrica que permitiam a exploração dos moradores por uma Comissão da Luz que, solidamente instalada na Associação, cobrava o que queria por um fornecimento de energia sempre deficiente.

Uma comissão de moradores levou a reivindicação à Light e recebeu uma resposta que era quase uma provocação.  A Light entraria no morro, instalaria sub-estações e garantiria o fornecimento de energia elétrica a cada barraco se, no prazo de um mês, a comissão entregasse uma planta com a localização de cada barraco e uma proposta  para a instalação dos PCs – assim eram chamadas as sub-estações – projetada sobre um mapa topográfico.  Além disso, cada viela do morro deveria ganhar placa e nome de rua.

De volta ao Morro a comissão foi objetiva: “a gente faz o mapeamento no braço e a PUC põe tudo em língua de doutor”.  No dia seguinte montou-se uma operação de guerra.  O Morro foi fotografado do alto de um prédio da rua da Matriz, e, com base nessa foto, dividido em áreas que ficaram a cargo de grupos de moradores que iam de casa em casa para garantir que ninguém ficasse fora do mapa.  Os departamentos de Geografia, Engenharia Civil e Engenharia Elétrica foram encarregados da tradução daqueles mapas toscos em língua de doutor, gente de vários outros departamentos ajudou na compra e corte das chapas de metal; nas divertidíssimas reuniões para a escolha do nome de cada rua e viela para a qual só uma regra era imutável:  “Não pode nome de ninguém vivo.  A não ser o Padre Velloso!”, razão pela qual até hoje a viela principal e que atravessa verticalmente o morro ostenta o nome de Avenida Padre Velloso, em homenagem ao ex-reitor da PUC-Rio que trabalhou no Santa Marta por mais de 50 anos. Todos participaram na caprichosa pintura de cada placa “igualzinha às da rua”, origem da toponímia que brotou da imaginação dos moradores: Rua da Paciência, Beco da Alegria, Beco da Mina, Rua da Vala ou Rua do Almirante, nome escolhido para batizar a viela que serpenteia em direção... ao Mirante de Dona Marta.

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Antes que terminasse o mês, a comissão, orgulhosa, abriu diante dos olhos atônitos do presidente da Light os mapas topográficos e a planta com a identificação de cada barraco atribuída a locatários fictícios, por sugestão de professores que tinham aprendido duramente os anos da repressão o perigo de abrir informações que poderiam comprometer pessoas, enquanto a planta original com os nomes verídicos, que aqui aparece reproduzida em parte, ficava seguramente escondida em três cópias,  uma no fundo de um armário de um discreto Departamento da PUC-Rio, uma na casa de uma insuspeita avó de professora que, por certo, nunca soube disso, e uma na casa de um estudante de engenharia elétrica.

A Light cumpriu o prometido e instalou a luz.  De quebra, impressionado com o nível de organização dos moradores, o presidente da companhia colaborou com a construção de um prédio novo para a Associação, já então fora das mãos da famigerada Comissão da Luz.  E um aluno de engenharia civil resolveu fazer, como trabalho de final de curso, o projeto e a instalação de uma originalíssima rede de distribuição de água com tubos de PVC que passam por cima dos telhados dos barracos e que distribuem a água do reservatório situado no alto do Morro utilizando apenas a força da gravidade, e que funciona até hoje.

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A história é longa, mas representa bem, tal como as outras fotos, ilustrativas de outras sensibilidades, que retratam um grupo de professores que sobe um Morro não identificado em 1951, os móveis de desabrigados da enchente de 1965 armazenados e custodiados na universidade, um grupo de moradores de uma favela com o secretário geral da universidade, como a PUC-Rio, sem desconhecer que sua função social primordial é produzir conhecimento e formar profissionais competentes e críticos, sabe e quer exercer funções de suplência quando é para isso convocada.

   

Porque o que é próprio de uma universidade é ter, sempre, suas portas abertas.

 

Professora Margarida de Souza Neves
Coordenadora do Núcleo de Memória da PUC-Rio
Departamento de História
 

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