As imagens que ilustram esse mês contam muitas histórias.
As curvas de nível do mapa topográfico e a planta que indica a
vizinhança da capela com a macumba de D. Maria Portuguesa e o lugar de
moradia do Tio Binha, da Maria Batuca e das Irmãs Bambú ajudam a contar uma delas.
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Corriam os anos 80, anos de muitos desafios e de alguns
sobressaltos mas, sobretudo, anos de esperanças com a redemocratização
do país. Vivíamos todos a saborosa sensação de retomarmos o que era
nosso, de afirmar em praça pública a cidadania, de experimentar o gosto
da liberdade, de pensar, dizer, e escrever com ela.
A PUC-Rio viveu, em sintonia com aqueles tempos, uma
experiência peculiar que se traduziu no MUSP, sigla não muito feliz do
Movimento Universidade a Serviço do Povo, que pretendeu estreitar
os laços entre as competências específicas da universidade e as demandas
das organizações populares, aglutinou estudantes e professores e atuou
em mais de 30 favelas do Rio de Janeiro, entre elas, o Morro de Santa
Marta, em Botafogo, onde morava, para surpresa de muitos, o vice-reitor
acadêmico, Pe. Agostinho Castejón S.J., e onde atuava um grupo não muito
numeroso de estudantes e professores.

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Reunidos em assembléia, os moradores do Santa Marta
decidiram reivindicar da Light a instalação de uma rede elétrica que
permitisse o fornecimento de luz a cada barraco, de forma a terminar de
vez com os perigosos gatos da fiação elétrica que permitiam a
exploração dos moradores por uma Comissão da Luz que, solidamente
instalada na Associação, cobrava o que queria por um fornecimento de
energia sempre deficiente.
Uma comissão de moradores levou a reivindicação à Light e
recebeu uma resposta que era quase uma provocação. A Light entraria no
morro, instalaria sub-estações e garantiria o fornecimento de energia
elétrica a cada barraco se, no prazo de um mês, a comissão entregasse
uma planta com a localização de cada barraco e uma proposta para a
instalação dos PCs – assim eram chamadas as sub-estações – projetada
sobre um mapa topográfico. Além disso, cada viela do morro deveria
ganhar placa e nome de rua.
De volta ao Morro a comissão foi objetiva: “a gente faz
o mapeamento no braço e a PUC põe tudo em língua de doutor”. No dia
seguinte montou-se uma operação de guerra. O Morro foi fotografado do
alto de um prédio da rua da Matriz, e, com base nessa foto, dividido em
áreas que ficaram a cargo de grupos de moradores que iam de casa em casa
para garantir que ninguém ficasse fora do mapa. Os departamentos de
Geografia, Engenharia Civil e Engenharia Elétrica foram encarregados da
tradução daqueles mapas toscos em língua de doutor, gente de
vários outros departamentos ajudou na compra e corte das chapas de
metal; nas divertidíssimas reuniões para a escolha do nome de cada rua e
viela para a qual só uma regra era imutável: “Não pode nome de
ninguém vivo. A não ser o Padre Velloso!”, razão pela qual até hoje
a viela principal e que atravessa verticalmente o morro ostenta o nome
de Avenida Padre Velloso, em homenagem ao ex-reitor da PUC-Rio
que trabalhou no Santa Marta por mais de 50 anos. Todos
participaram na caprichosa pintura de cada placa “igualzinha às da
rua”, origem da toponímia que brotou da imaginação dos moradores:
Rua da Paciência, Beco da Alegria, Beco da Mina, Rua da Vala ou
Rua do Almirante, nome escolhido para batizar a viela que serpenteia
em direção... ao Mirante de Dona Marta.

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Antes que terminasse o mês, a comissão, orgulhosa, abriu
diante dos olhos atônitos do presidente da Light os mapas topográficos e
a planta com a identificação de cada barraco atribuída a locatários
fictícios, por sugestão de professores que tinham aprendido duramente os
anos da repressão o perigo de abrir informações que poderiam comprometer
pessoas, enquanto a planta original com os nomes verídicos, que aqui
aparece reproduzida em parte, ficava seguramente escondida em três
cópias, uma no fundo de um armário de um discreto Departamento da
PUC-Rio, uma na casa de uma insuspeita avó de professora que, por certo,
nunca soube disso, e uma na casa de um estudante de engenharia elétrica.
A Light cumpriu o prometido e instalou a luz. De quebra,
impressionado com o nível de organização dos moradores, o presidente da
companhia colaborou com a construção de um prédio novo para a Associação,
já então fora das mãos da famigerada Comissão da Luz. E um aluno
de engenharia civil resolveu fazer, como trabalho de final de curso, o
projeto e a instalação de uma originalíssima rede de distribuição de
água com tubos de PVC que passam por cima dos telhados dos barracos e
que distribuem a água do reservatório situado no alto do Morro
utilizando apenas a força da gravidade, e que funciona até hoje.

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A história é longa, mas representa bem, tal como as outras
fotos, ilustrativas de outras sensibilidades, que retratam um grupo de
professores que sobe um Morro não identificado em 1951, os móveis de
desabrigados da enchente de 1965 armazenados e custodiados na
universidade, um grupo de moradores de uma favela com o secretário geral
da universidade, como a PUC-Rio, sem desconhecer que sua função social
primordial é produzir conhecimento e formar profissionais competentes e
críticos, sabe e quer exercer funções de suplência quando é para isso
convocada.

Porque o que é próprio de uma universidade é ter, sempre,
suas portas abertas.
Professora Margarida de Souza Neves Coordenadora do Núcleo de Memória da PUC-Rio Departamento de História
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