Dom Helder Camara: Um Pastor para o Século XXI
por Maria Clara Lucchetti Bingemer*
Aos 7 de fevereiro de 1909 nascia em Fortaleza, Ceará, o menino Helder Pessoa Camara. Franzino nasceu, franzino seguiria até sua morte, em 27 de agosto de 1999. Seus pais, o jornalista João Eduardo e a professora Adelaide foram fecundos genitores de uma prole de 11. Destes, apenas oito sobreviveram. Uma epidemia que assolou a região em 1905 atingiu cruelmente as famílias nordestinas, não poupando nem as remediadas, como a de Helder Camara.
Inteligente, estudioso, o menino Helder entraria com 11 anos no Seminário menor. Ali amadureceu sua vocação sacerdotal, revelada já na infância quando armava altares de brinquedo e rezava missas imaginárias. Em 1923, com apenas 14 anos de idade, Helder entrava no seminário diocesano da Prainha de São José, em Fortaleza, onde fez os cursos preparatórios para o sacerdócio.
Ao comunicar sua decisão ao pai, maçom e afastado da Igreja, ouviu palavras das quais nunca se esqueceu: "Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar". A isso estava disposto o jovem Helder. E a vida demonstraria depois que sua vocação era autentica. Mas igualmente eram autenticas as palavras do pai, que foram sempre um marco em sua memória e configuraram sua trajetória.
O Evangelho de Jesus Cristo foi seu primeiro e mais importante amor. No entanto, na riquíssima personalidade do cearense franzino e inteligente brotava também outro amor, que o acompanharia durante o resto de sua vida: a política como instrumento de inserção na realidade para servi-la e transformá-la. O mesmo ano de sua ordenação, 1931, marcou também sua entrada na Ação Integralista Brasileira. Ali buscou concreta inserção política. Ali também se decepcionou e deixou o movimento em 1937, após um curto período de seis anos.
A partir daí, a vida do jovem Helder Camara será um borbulhar contínuo de criatividade manifestada no fecundo movimento desta tensão dialética: a mística e a política. Integrando seu sacerdócio em um serviço lúcido e incansável no mundo, ele o fez a partir da trincheira que no Brasil de meados do século XX melhor fazia essa interface: a educação.
Em 1932 era fundado o Instituto Católico de Estudos Superiores, com apoio de Dom Leme e do Centro Dom Vital. Esse Instituto já prefigurava outra instituição, maior e de muito mais peso, que marcaria definitivamente a vida educacional do país: a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em 1936, Pe.Helder, transferido para o Rio de Janeiro, mergulha de cheio nesse ambiente educacional em ebulição. Exerceu as funções de Diretor do Serviço de Medidas e Programas da Secretaria do Ministério da Educação, tendo sido por muitos anos membro do Conselho Federal de Educação. Ao longo de sua vida sempre procurou influir nas políticas publicas educacionais do Brasil.
Com ardor e zelo apostólico, olhava o mundo e constatava a urgente necessidade que havia de cristãos leigos comprometidos que assumissem plenamente sua missão sob a forma de serviço mergulhado na realidade. Em 1947 trabalha com entusiasmo na Ação Católica Brasileira, fundada por Dom Leme em 1935, tendo Alceu Amoroso Lima como seu primeiro presidente. Pe. Helder foi nomeado assistente geral do movimento por ocasião da celebração de sua III Semana Nacional, de 24 a 31 de outubro de 1948 em Porto Alegre, permanecendo no cargo até 1962.
Em 1952, pelas mãos do então Cardeal Arcebispo Dom Jaime de Barros Camara, o Pe. Helder é sagrado bispo, com o lema: “In manus tuas” (Em tuas mãos). Com estas palavras queria significar a entrega radical e total que o inspirara desde seus jovens anos a seguir a vocação sacerdotal e que as palavras de seu pai, entre apreensivo e cético, gravaram a fogo em seu coração. Bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro, capital da República, ampliou assim suas possibilidades e seu raio de atuação. No mesmo ano de 1952 participou da fundação da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, sendo igualmente o primeiro secretário geral da Conferencia, cargo que ocupou até outubro de 1964, quando a CNBB elegeu nova direção, mais afinada com o golpe militar que relegou Dom Helder a penoso silencio e ostracismo. No mesmo ano foi transferido para a Arquidiocese de Olinda e Recife, em Pernambuco, à cuja frente permaneceu até 1985.
No Rio de Janeiro, deixava precioso legado. Como bispo auxiliar foi a alma da preparação do XXIV Congressos Eucarístico Internacional e da primeira Assembléia do Episcopado Latino-americano que resultou na criação do CELAM (1955), no qual foi depois delegado do Brasil e seguidas vezes vice-presidente. Voltara-se para o problema imenso das favelas que contíguas ao asfalto elevavam suas sombras de sofrimento e miséria. Conseguiu junto ao Presidente Café Filho a doação de terras da União em regiões desvalorizadas para construir moradias dignas para os favelados. Em 1957, na área mais nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro, a Lagoa Rodrigo de Freitas, onde se localizava a Praia do Pinto, construiu a Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional para os favelados com um empréstimo do Banco do Brasil.
Pensando na continuidade dos projetos iniciados e levados a cabo, fundou em 1959 o Banco da Providencia, que se ocupava de conseguir e administrar recursos para os projetos sociais da diocese. A partir de 1961, até os dias de hoje, sob sua inspiração o Rio de Janeiro realiza anualmente a Feira da Providencia, de cuja arrecadação o Banco tira em boa parte os proventos com que sustenta os projetos sociais.
Os anos que eram de chumbo para o Brasil anunciavam-se primaveris e dourados para a Igreja, que mostrava todo o vigor do Evangelho em diálogo com o mundo moderno e em favor dos pobres. Em 1962 o Concilio Vaticano II começava, sob o báculo amoroso e profético do Papa João XXIII. Reuniram-se os padres conciliares em quatro sessões anuais até 1965. Dom Helder participou ativamente da fase preparatória e das sessões, articulando com outros bispos o futuro eclesial do continente latino-americano. Foi um dos propositores e signatários do Pacto das Catacumbas, assinado por cerca de 40 padres conciliares, nas catacumbas de Domitila, em Roma, durante o Concílio, depois da celebração da Eucaristia. Este pacto teve forte influência na Teologia da Libertação e Dom Helder foi determinante na convocação, coordenação e redação do texto, assinado posteriormente por cerca de 500 padres conciliares.
No ano de 1968 acontecia a Conferencia Geral do Episcopado Latino americano em Medellín, Colômbia. Dom Helder, já não mais no Rio de Janeiro, foi delegado à assembléia e teve decisiva influencia no documento de conclusões, marco da aliança da Igreja latinoamericna com os pobres e a construção da justiça. Foi de novo eleito delegado para a III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Puebla, no México, em 1979.
Em 1968 fundou o Instituto Teológico do Recife, que formou gerações de padres e agentes de pastoral e foi fechado em 1988. Em 1969 Dom Helder cria o Encontro de Irmãos, com leigos evangelizando em bairros populares. Constituíram esses encontros a semente das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e deles brotaram projetos-piloto de reforma agrária sem violência, em sistema cooperativo, que se estenderam posteriormente a outros estados do Nordeste.
Desde Recife, sua sede episcopal a partir de 1964, foi responsável por um dos mais bem sucedidos focos de resistência ao regime militar. A repressão o golpeou duramente, proibindo qualquer meio de comunicação de citar sequer seu nome. Recebeu inúmeras ameaças de morte, tendo a casa metralhada e a vida constantemente exposta ao risco. Em 1969 foi assassinado depois de bárbaras torturas seu auxiliar direto na arquidiocese e responsável pela Pastoral da Juventude o Padre Henrique Pereira Neto causando-lhe dor profunda.
Entretanto, a repercussão internacional de seu carisma e atuação era cada vez maior. O apóstolo incansável da não violência ativa discursava pelo mundo inteiro pregando o inseparável binômio justiça e paz. A partir de 1970, por quatro anos consecutivos, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, sendo a indicação obstaculizada pelo governo brasileiro. Mas outros prêmios, muitos, lhe foram dados. Doutorados honoris causa, nos EUA, Bélgica, Suíça, Alemanha, Holanda, Itália, Canadá e Estados Unidos, além do Brasil. Recebeu título de cidadão honorário de 28 cidades brasileiras e da cidade de São Nicolau, na Suíça, e Rocamadour, na França. Além disso, o Prêmio Martin Luther King, nos EUA, e o Prêmio Popular da Paz, na Noruega, procuraram reparar a injustiça pelo fato de o premio Nobel da Paz nunca lhe haver sido dado.
Assim prosseguiu até 1985, quando se tornou Arcebispo Emérito de Olinda e Recife. Foi substituído no Arcebispado, aos 76 anos, por limite de idade. Permaneceu em Recife, residindo humildemente nos fundos da Igreja de Nossa Senhora das Fronteiras da Estância de Henrique Dias.
As noites do Recife foram testemunha das vigílias feitas pelo arcebispo emérito olhando as estrelas e dialogando com o Criador. Dali saíram suas mais lindas poesias, textos de reflexão, cartas, onde a entrega nas mãos de seu Senhor podia ser sentida a cada letra. Eram escritos sobre a paz, sobre a presença de Deus e também e inseparavelmente sobre os pobres, a justiça, a importância dos cristãos estarem engajados nas grandes lutas da humanidade.
O chamado “Arcebispo Vermelho”, na verdade Profeta da Paz, permanece vivo. Aqueles que tentaram silenciá-lo e neutralizar sua profética atuação – quem se lembra sequer de seus nomes? Helder Pessoa Camara, no entanto, continua inspirando vidas e movendo corações. Sua vida é verdadeiro dom de Deus feito à sociedade e à Igreja brasileiras e universais. Dom do qual até hoje colhemos os frutos. O Evangelho ensina que se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Parece neste caso, não ter sido necessário. Neste ano de celebração de seu centenário a voz de Dom Helder continua falando, não através de pedras, mas da carne e do sangue, do corpo e da alma, da fé e do compromisso daqueles e daquelas que a ouviram e graças a ela se puseram mais radicalmente no seguimento de Jesus Cristo e na construção de seu Reino.
*Maria Clara Lucchetti Bingemer
Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio